#042 – Escrita & Corrida

#042 – Tem muitas coisas que eu amo fazer, e não tem nada muito especial com elas: viajar, comer, dançar, encontrar os amigos, ouvir os pássaros, cinema, fotografia. Essas coisas conversam, e talvez seja bastante comum desenhar paralelos – aproximações e diferenças – entre nossas pequenas e grandes paixões. Como você, uma das minhas paixões é a escrita. Tenho um segundo interesse, contudo, que nem todo mundo compartilha, e que se parece em muito com a escrita em diversos aspectos. É a atividade da corrida.
Faz pouco tempo que corro. Em fevereiro de 2022, vai fazer quatro anos. Levou esse tempo todo para que eu ficasse tranquilo em correr dez quilômetros sem sofrer ou ter medo de lesionar alguma parte do corpo. Antes disso, dez quilômetros parecia impossível para mim, uma distância de atletas. Mas sei que estou longe de ser um atleta, e cheguei lá. Conheço gente que, em muito menos tempo, atingiu 20 quilômetros, ou até mesmo 40 quilômetros, que é a distância de uma maratona. Confesso que não me importo muito com isso. Gosto tanto de correr, sou tão precavido com isso que a ideia de me machucar ao passar dos limites e ter de ficar um tempo de recuperação me fez progredir muito devagar. Não me arrependo e não faço a menor questão de percorrer meia maratona.
Correndo, descobrimos o mundo. Estamos da altura humana das coisas, ao contrário de um ônibus ou um carro, quando tudo passa por nós numa velocidade excessiva, e mal conseguimos processar uma imagem antes que sobrevenha uma segunda, e mais outra.
O caminho dos pés é muitas vezes diferente dos caminhos dos olhos, e por isso, as paisagens que furam as linhas de fuga me parecem tão interessantes. Ao correr, alcançamos um estado de consciência muito parecido com o da escrita. O ritmo dos pés, a taquicardia, a dilatação dos poros, o devaneio solar do movimento levam a cabeça para longe. Em certo sentido, desaparecemos.
Quando as coisas todas fecharam durante a pandemia, eu despertava antes do amanhecer e saía para correr. As ruas estavam desertas. Era a minha subversão, meu momento de intimidade com a cidade. E percorrendo o bairro da Santa Cecília, onde morava até há pouco tempo, eu me lembrava de outros cenários: a manhã em que corri em Lisboa e dei a volta no que parecia um pequeno coliseu. O percurso úmido no condomínio de meu irmão em Florianópolis, as ruazinhas no bairro de Ueno, em Tóquio. Ou em Kyoto, quando eu subia e descia o rio que corta a cidade do norte ao sul. Lembro de correr em Xangai enquanto via homens escrevendo no chão com pincéis gigantes, e no meu fone de ouvido escutava as notícias alarmantes do nosso país. E ontem, quando acordei cedo, venci a preguiça e o frio no Parque Natural da Serra de Collserola, nos arredores de Barcelona, quando saí para correr, pensei em como a coisa se parecia com escrever: enfrentamos a resistência, a inércia, para alcançar um lugar incomum, inusitado, maravilhoso, às vezes terrível e lúcido.
Neste episódio, falo sobre os paralelos das atividades da escrita e da corrida. E gravei uma playlist com algumas das músicas que eu amo escutar enquanto corro. São quase todas em língua estrangeira, porque assim consigo pensar em outras coisas além da letra da música. São, é claro, do meu gosto pessoal. São músicas animadas, para dizer o mínimo, não tem nada da seleção refinada de clássicos do jazz, rock, nada erudito, evidentemente. É um pedacinho da minha intimidade que compartilho com você.
Bibliografia mencionada no episódio:
“Correr”, Drauzio Varella
“Do que eu falo quando falo de corrida”, Haruki Murakami
“Nascido para correr”, Christopher Mcdougall
“Healing backpain”, John E. Sarno
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