Reencontrei há alguns dias esta crônica que escrevi em Xangai, na China, em 2019, em uma temporada asiática que fizemos naquele ano. Voltamos cinco meses antes daquele incidente zero que impediria todo mundo de viajar.
Talvez estejamos passando pela lenta transição entre os home offices e os cafés, e me ocorreu oferecer a você este breve retrato sobre os cafés como escritórios de escritores. Espero que curta. 😉
Numa viagem, pode ser muito difícil preservar o hábito de tomar um bom café com um pouco de leite. Nada pode ser tão simples e no entanto, a noção de café, aparentemente sólida e consagrada, transforma-se de país para país. Depende da qualidade do café disponível, do preço, dos espaços para o ritual, das técnicas utilizadas, do clima e da estação do ano. Depende do leite e da nossa abertura para algo diferente, para algo que se parece com um café ou com um leite.
O problema da flexibilidade é que, dependendo do quanto se tensiona certa prática, a mudança implicará numa outra instituição, numa descaracterização total da ideia inicial.
Quando eu vivia em Buenos Aires, certa vez, um casal de amigos me convidou para um churrasco à noite no meio da semana. Eu era o único convidado e estranhei o convite. No Brasil um churrasco é um evento. Compra-se muita carne, pão de alho, cerveja, tomate e cebola para o vinagrete. Começamos a beber desde cedo e a proposta é acabar-se, comer a mais do que se está acostumado. Há o ritual de abrasar o carvão, que pode ser feito de muitas maneiras, mas que levará sempre mais tempo que a ignição de um forno doméstico e envolverá alguma sujeira, fuligem e disposição.
Em Buenos Aires, um churrasco pode ser feito com dois chorizos e uma entraña. A carne pode ser preparada de antemão na varanda e levada para a cozinha. Não é um ritual de abundância – não necessariamente, ao menos – em torno de um fogo primordial, não é uma comunhão entorpecente ou um processo diuturno. Salga-se a carne de outra maneira. Corta-se a carne de outra maneira. A carne, inclusive, é outra. São gados muito diferentes, submetidos a diferentes criações e processos produtivos.
Escrevo de um café em Xangai num bairro chamado Concessão Francesa, uma pequena europa incrustada no país social-capitalista e um estigma urbano da colonização. É um lugar charmoso, com ciabattas, brioches, ecláirs e mousses de chocolate, gringos proseando, gente sozinha trabalhando ou passando o tempo. Quero um café com um pouco de leite, algo mais que uma espuma. Acabo de almoçar e não desejo tomar meia xícara de leite. Aprendi a duras penas que se pedir um Latte, qualquer coisa poderá aparecer. A única opção do cardápio que me resta é o machiatto, um café preto com um pouco de leite, supostamente o que estou procurando. Pago, me dirijo a uma mesa. Dali a pouco, o garçom deixa a xícara diante de mim. Com a colher, abro caminho na espuma branca e o que se vê é café preto como breu, que não muda nem um pouco de cor quando o misturo com a espuma decorativa. Tomo o café, amargo e com gosto de engrenagem.
Concessão Francesa, Xangai, China
Na Tailândia, o café era diluído em muito gelo. A parca alternativa das latinhas das lojas de conveniência de café com leite adoçado funciona por pouco tempo. Não tomo mais o meu café com açúcar. E quando se começa a tomar cafés enlatados, logo se passa a desconfiar que aquilo se parece pouco ou nada com um café de verdade.
No Vietnã, o café é tirado das cafeteiras italianas. Usa-se leite condensado. Ou o ovo batido. Durante a guerra, na falta do leite, misturavam o café ao ovo para criar um efeito de bebida cremosa. Nenhuma das opções vai durar muito tempo na substituição de meu hábito de tomar um cafezinho com leite. A primeira por ser doce demais, a segunda por ser muito pesada.
Café com ovo, Hanói, Vietnã (ou Cà phê trứng)
No Japão, você encontra um bom café até mesmo no Starbucks. A proporção entre café e leite é adequada. O aroma do café é suave e o leite é gordo e cremoso, tirado das vacas felizes de Hokkaido. Encontro no supermercado o que até então não tinha visto no sudeste asiático: filtros de papel e porta-filtro. Cafés torrados, moídos, o pacote completo da felicidade.
E chegamos na China, onde um café expresso é muito caro, importado da Índia ou da Itália. Paga-se, às vezes, R$ 20 por um machiatto. É o que estou pagando por esses dois dedos de amargor metálico que satisfazem a necessidade e deixam o desejo intocado.
Eu poderia supor que um sujeito sem hábitos é um sujeito mais livre. Ele pode aceitar o que for e qualquer coisa estará boa para ele. O chá chinês é maravilhoso. Desde tempos imemoriais, os chineses acreditam que a água quente faça bem à saúde. Quando tinham dinheiro para isso, colocavam folhas aromáticas na água. Eis o chá. Depois, elevaram a bebida a um ritual espiritual e reflexivo. “O gosto do zen (ch’an) e o gosto do chá (ch’a) são o mesmo.” O chá era um luxo para os camponeses pobres. O pai de Wang Lung, protagonista de “A boa terra”, da Pearl Buck, reclama com o filho quando este o desperta com o chá e não com a água quente, disfarçando mal a sua satisfação.
No Brasil, o café não me parece um item luxuoso. Meus antepassados camponeses que vieram da Itália plantavam café nas fazendas no interior de São Paulo. O café era abundante na mesa simples da casa de estuque – o luxo é uma questão geográfica e temporal, afinal (no início do século, havia tanta lagosta nos EUA que eles o serviam aos condenados em complexos penitenciários, e havia quem considerasse desumano oferecer a carne de um animal tão repugnante). Mesmo assim, há quem esteja aderindo ao Fator Latte, um cálculo esdrúxulo que coloca na ponta do lápis todo o dinheiro gasto por um sujeito adulto num café da tarde, revertido em investimentos, resultando na conclusão igualmente esdrúxula de que quem não toma café tem mais chances de ficar rico. Mas aqui em Xangai, a vinte reais o cafezinho, sinto um pouco de remorso de preservar o hábito. Não se trata de ter ou não este dinheiro, de tirar de um lugar para colocar em outro, mas de pagar cinco vezes o preço pelo que devia ser elementar, um pequeno marco diário entre os tempos cotidianos. É bom começar uma sessão de trabalho com uma pequena xícara de café com leite ao meu lado sobre a mesa. Sinto prazer com um bom café. E um prazer não deveria exigir tantas justificativas.
Um café tem história. É onde escritores se abrigavam do frio das ruas e do confinamento de sua água-furtada para escrever. Dali se via o mundo e a pressa estanque que o hipnotiza. Às suas mesas, metidos na fumaça de alcatrão, mantinham-se debates apaixonados e que conduziam a cursos de ações de importância histórica.
Assim começa Paris é uma festa, de Ernst Hemingway:
“…Vinha então o mau tempo, que chegava, um dia, no fim do Outono. O remédio era fechar as janelas à noite, por causa da chuva, enquanto o vento arrancava as folhas às árvores da Place Contrescarpe. As folhas jaziam ensopadas no solo e o vento atirava com a chuva de encontro aos grandes autocarros verdes na estação terminal. O Café des Amateurs enchia-se de gente e as janelas embaciavam-se todas, com o calor e o fumo que lá dentro reinavam. Era um café triste e mal orientado, onde os bêbedos do sítio se apinhavam, e que eu evitava, devido ao cheiro a corpos sujos e ao azedo da embriaguez. Os homens e as mulheres que frequentavam o Amateurs andavam permanentemente embriagados ou, pelo menos, sempre que tinham dinheiro para isso, e a maior parte das vezes faziam-no com vinho que compravam aos litros e aos meio litros. Anunciavam-se lá aperitivos de nomes muito esquisitos, mas poucos eram os clientes que se podiam dar ao luxo de os tomar, a não ser que deles necessitassem para assentar o estômago, à laia de preparação para os copos de vinho que se seguiriam. As mulheres que se embriagavam eram conhecidas pelo nome de poivrottes, o que quer dizer borrachonas.”
Café literário em Óbidos
Hoje em dia, o café representa o meio caminho entre o trabalho e o ócio, um bom lugar para se estar. É para onde se dirigem aqueles profissionais de autonomia parcial, pagos por serviço, pelo trabalho que executam e sem os direitos e haveres dos vínculos empregatícios. Um café, nesses casos, é apenas o recibo de aluguel de uma mesa por um par de horas. O que se compra, na verdade, é tempo e espaço para o pensamento. Quando este sujeito supostamente autônomo está viajando, o café oferece o recurso adicional de conceder algumas horas de descanso aos pés e a possibilidade de aliviar uma bexiga inchada.