Levei muito tempo para entender a conversa com um artesão de Kyoto em uma tarde de primavera fria e delicada.

Foi pouco antes da pandemia, durante a minha segunda temporada asiática. Meu amigo Julián Fuks disse que se eu ia para Bangkok, teria de falar com o escritor tailandês Prabda Yoon. Este escritor disse que tínhamos de conhecer Yoshiko em nossa passagem por Tokyo. E no segundo ou terceiro encontro com Yoshiko, quando avisamos que ficaríamos algumas semanas em Kyoto, ela admoestou-nos a visitar a pequena loja de Tori.

Kyoto tem riachos, florestas de bambu, templos grandiosos e um rio largo e paciente que recorta a cidade ao meio. Minhas recordações desta cidade se parecem pouco com recordações. São como sonhos que alguém teve. E nesses sonhos de Kyoto, eu me lembro que andava muito cansado. Achava que talvez a vida se esgotasse, ou que eu já não tinha mais o que entregar a ela. Eu tinha de recorrer à memória de um entusiasmo, de uma alegria jovial que eu já não possuía. E era apenas assim que eu reunia as forças para fazer as coisas de que gostava.

É por estar neste estado de espírito que o encontro com Tori me surpreendeu. Sua loja ficava do outro lado do rio. Fomos à pé (quase tudo por lá podia ser alcançado à pé). Chegamos a uma rua estreita, vazia. Deslizamos a porta. A loja era quase toda de madeira, com paredes cor de barro. A nós, ocidentais, ela se parecia com um pequeno templo. Mas um templo sóbrio, solene. Quando Yoshiko me dissera que Tori tinha uma papelaria, não podia imaginar que a versão japonesa fosse tão sumária. Nas prateleiras havia cartões, papéis delicados de distintas texturas, em pequenas pilhas de três ou quatro. Nada ali tinha um preço. Nada estava à venda.

E havia Tori, sobre um tablado. Ele nos contou de seu ofício. Que trocara as máquinas pela produção artesanal, e por isso regressara da Califórnia, onde cursara parte de seus estudos. Não ficava claro para mim se Tori trabalhava muito ou trabalhava pouco. O fato é que trabalhava o dia todo. O seu dia, contudo, era algo distinto do que poderia ser para você ou para mim. Com as mãos no papel, ele alternava períodos de longa e silenciosa imersão a uma vigorosa atividade corriqueira.

Perguntei a Tori se ele nunca se cansava. Ele pareceu não entender a pergunta. Levou um tempo para responder e, por fim, disse que não podia estar cansado, porque descansava naquilo que fazia. No tedioso ofício sobre o papel ele encontrava a sua meditação. Ele sonhava com as mãos ocupadas, e ali ele explorava as sete maravilhas do mundo. O papel era um substrato da seiva das árvores, e as árvores enchiam o planeta com o ar que todos os outros seres respiravam. Com seus papéis, ele via as florestas e caminhava pelos bosques. Àquela altura, perguntei-lhe algo tolo, se o seu ofício era para ele uma espécie de missão. Ele disse que não via o trabalho como os ocidentais que conhecera na Califórnia, que falavam em missão como se precisássemos expiar uma falta. O que ele fazia era algo ordinário. Era comum.

fotos da papelaria de Tori

E naquele momento eu pude compreender, ainda que por um instante, que o artesão não buscava um sentido para a vida, que ele era muito respeitoso com aquilo que ele exigia do seu trabalho, mas que o mundo respirava com ele na humilde atividade que escolhera para si. Havia algo no ofício que o ligava ao mundo. E o ofício moldava o artesão. Era o elã vital entre o cantor e seu público; como duas baterias, uma carregando a outra. O ofício não era uma urgência, uma ansiedade. Pelo contrário: não havia pressa, mas uma confiança nessa espécie de inércia inteligente. Ele parecia atento ao invisível, porque fazia aquilo há muito tempo e se acostumara às coisas mais sutis. E por dominar o que fazia, não sentia tédio ou cansaço. Ele não se considerava qualquer outra coisa além do que era, porque não buscava novidades, não se julgava incapaz, não se enjoava fácil.

O meu cansaço talvez derivasse da pontinha do pé que eu deixava do lado de fora do que quer que estivesse fazendo naqueles tempos. O escrúpulo, a hesitação, o excesso de falsas escolhas.

Mas o artesão de Kyoto estava ali. Em sua pequena loja. Em seu pequeno templo. Simplesmente. Inteiro. Presente.

Feliz Ano Novo!

Um abraço,

Tiago

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