Escrever é um ato essencialmente corporal. Escrevo um livro ao longo de meses, sentado na sala, às vezes no escritório. Em determinadas sessões eu me deixo animar. Releio o trecho que escrevi. Preciso me levantar, fazer uma pausa, tomar um café. O corpo reage ao processo: a endorfina intelectual me exaure e produz um atordoamento. Realizou-se, pressinto, algo pelo que esperava. Só então poderei me dedicar aos afazeres cotidianos, como correr, almoçar, trabalhar.
Persiste na sociedade a ideia de que escritores precisam ser egoístas, antissociais, excêntricos, alto-indulgentes, caprichosos, excessivos, melancólicos. A escrita condiria com a negação pura, a recusa a qualquer forma positiva. Escrever é um modo de existência que se expressa fisicamente e o corpo serviria de mensageiro.
Esta negação que supostamente faria parte do ofício pode ser vista como algo passivo ou ativo. De maneira ativa, a recusa é um gesto político. Passivamente, não poderia se apresentar como uma decisão, mas como reação. O corpo ferido do autor é reativo à instabilidade da produção literária. Caprichoso e raro, o verso perfeito visitaria o poeta mediante o sacrifício da vida. A palavra o assuntará; será arrastado pela deriva, pelo caos, ainda que desse jogo nada sobreviva do jogador senão a sua alma na forma de um poema.
Mas se o ato é tão físico e excruciante, talvez seja preciso recebê-lo em sã consciência, com pernas fortes e boa disposição. A consciência jamais será inteiramente sã, e é bom que assim seja. Tampouco será apenas a consciência o espírito presente nesta descarga mediúnica do escritor. Muito do que se passa escorre entre os dedos da consciência.
Mas como escrever um livro atrás do outro sem um mínimo de integridade que nos proteja da tempestade? Como manter-se íntegro ao mareio, dormir, acordar e retomar no dia seguinte, sabendo que a existência do livro depende apenas desta insistência, do equilíbrio entre o imediato e a duração?
E se não quisermos nos tornar os mártires da escrita? E se não venerarmos tanto assim a arte, por julgar que todo martírio e toda veneração precisam ser superados? Neste caso, não seria melhor resistir à vulgaridade romântica e à marcha apolínea em um só movimento?
Acredito que alguns estilos e alguns gêneros exijam que estejamos de olhos mais abertos que fechados. Nossa memória registrou muito da vida, de seus detalhes, o suficiente para que possamos narrá-lo. Mas a memória também é resgatada pelo presente: o que vemos, as conversas que temos, os livros e as artes aos quais nos aproximamos, tudo isso como que lança as linhas da pescaria sensível da memória. A escrita se molda tanto de algo que se ouviu de orelhada quanto de uma visão sedimentada por percepções e teorias pessoais.
Quando jovens, não nos falta disposição nem intensidade. Mas com o tempo, a tendência é que o corpo acumule gordura e ganhe flacidez. A atenção, se não a demandarmos, míngua. A cognição se submete à languidez. A história está impregnada de exemplos de escritores que tiveram grandes estreias e cujo reconhecimento tornou-os coniventes com uma certa apatia da maturidade. Esta apatia tem correlação com um corpo e uma ação morosa. Não falo em sair como um vencedor, em ser um exemplo de vigor e altivez. Falo numa responsabilidade e do engajamento, muito distante da veneração e do martírio, de dedicar-se a uma prática que também é como qualquer outra prática. Caso contrário, como haverá o autor de adquirir a resistência para permanecer sentado durante horas por dia, todos os dias ao longo de meses, preservando a atenção e apurando a linguagem, para escrever o seu romance?
Karen Blixen dizia: “Escrevo um pouco todos os dias, sem expectativa, sem desespero.” Blixen é uma artista da fome. Não está ali pela compulsão. A temperança é uma forma de equilíbrio da fome. Criou para si o desapego necessário de tudo o que não sacia.
Por que a fome seria uma arte? Porque numa cultura que nos convida a saciar todos os desejos, não comer significa pensar e, em última instância, humanizar-se. O mesmo vale para qualquer esforço ou resistência à inércia ou à gravidade.
Blixen é uma artista da fome porque convive, dia a dia, com a voracidade do afeto e logra garantir um equilíbrio e preservar uma distância segura da fome. A voracidade, nestes casos, é outra forma de intolerância aos limites. Sem esperança, nem desespero. Isso significa dedicar-se a algo e não pretender que o ato o sacie.
Hemingway dizia sempre deixar uma ideia para o dia seguinte. Ele nunca escrevia tudo o que queria dizer em um único dia, porque temia que a saciedade o esterilizasse.
No arquipélago de Okinawa, no Japão, conhecido como o lugar com a maior proporção de centenários do mundo, cultiva-se uma prática chamada Hara Hachi Bu. Durante as refeições, nunca se deve comer até a saciedade. Come-se até preencher quatro quintos do estômago.
Este tipo de cuidado, para começar, obriga o sujeito a exercitar a propriocepção: a percepção dos órgãos internos. É uma prática de atenção. Em geral, quando comemos, estamos preocupados em terminar o prato. Calculamos o quanto ainda devemos comer a partir da quantidade de comida que falta, não que se acumula em nós. É por isso que os praticantes deste princípio sugerem que nos sirvamos de pequenas porções. Caso contrário, estaremos desatentos à sensação de saciedade. É claro que se isso é feito num sábado à tarde, entre garrafas de cerveja e papo animado, fica difícil, senão impossível, saber quando parar.
Dizem que leva vinte minutos para que o estômago nos informe que estamos saciados, não importa o quanto comamos neste intervalo. Se comemos até os quatro quintos, daremos tempo para que este processamento se dê. Comemos, assim, a medida exata da saciedade. Há uma diferença entre matar a fome e ficar cheio, e que representa os vinte por cento que não se deve ultrapassar.
Exige-se, assim, menos dos intestinos e do sistema vascular. O organismo não é obrigado a transferir tanto sangue para o sistema digestivo durante longos períodos. Embora estejamos acostumados a comer feito jiboias que passam doze horas processando um bezerro, o corpo talvez se ressinta com isso. O sono da digestão nos rouba parte do metabolismo. Perdemos energia às custas da carência que busca apaziguar-se com o preenchimento físico dos vazios metafísicos.
A fome é um modo de olhar para as coisas. Se dominamos a fome, ganhamos poder. Somos senhores e não escravos.
A criatura faminta do nosso tempo exige respostas em abundância: reflexão e ação, cultura e viagens. Não importa o quanto a saciemos, a fera estará sempre faminta. Quando devora, o que está fazendo é fugir da realidade da fome. Ela se deixa levar por qualquer música. É muito fácil distraí-la.
O artista da fome não foge porque sabe que ela é onipresente. Ele come bem porque não crê na saciedade.
Do que estamos correndo?