Como entender o nosso propósito, elaborar a nossa herança às vezes contraditória, discrepante?
Minha história é o resultado de uma contadora de histórias, uma artista plástica e o diretor de um centro cultural.

Antes de finalmente se aposentar, meu pai foi proprietário de uma pequena rede de videolocadoras. Ele começou com uma lojinha no Largo do Cambuci, em São Paulo. Lembro da tarde em que destrancou o porta-malas de seu velho corcel na frente de casa, e lá dentro havia pilhas e pilhas de filmes em VHS. A coisa deu tão certo que logo estava abrindo uma segunda loja. E uma terceira. No boom das videolocadoras no Brasil, ele chegou a ter sete lojas. Além de poder assistir aos filmes que queria, ganhei com ele, por simbiose, por convivência, uma certa noção da rotina de trabalho que levei para a minha atividade como escritor e professor de criação literária.
Minha mãe tomou um caminho muito diferente. Formou-se em artes plásticas. Ela não queria saber muito de se misturar e trabalhar em equipe. Vivia num mundo próprio. Obstinada, passava dias, meses trancada em seu ateliê. De uma obra embarcava em outra. De uma técnica em outra. Eram pinturas, esculturas, trabalhos têxteis. O ateliê da minha mãe não tinha nada de parecido com o escritório do meu pai, com exceção talvez de seguirem uma lógica de organização particular. Eles pareciam senhores dos seus instrumentos. Era proibido mexer nas bisnagas de tinta a óleo, nos pincéis, naqueles lápis apontados a estilete. Não eram brinquedos, ela me dizia. E a proibição me deixava ainda mais doido para brincar com as telas e as cores.
Meu pai saía todas as manhãs para trabalhar. Seu trabalho era muito interativo, muito constante. Havia os clientes regulares, que vinham duas vezes por semana, apanhavam três filmes e passavam uma boa hora falando das novidades do cinema, da atuação pouco conhecida de um determinado ator, da vida de um diretor. A locadora era um videoclube, um centro cultural. Aprendi muito sobre filmes quando trabalhei por lá. Minha mãe precisava estar em casa para fazer o que tinha de fazer. Mas eu acompanhava suas dificuldades, todos nós acompanhávamos: ela sofria por não se sentir confortável em vender o seu trabalho, não receber por ele algum tipo de autonomia e reconhecimento .
Vender um quadro era tão legítimo quanto alugar um filme.

 

Eu cresci e acabei absorvendo ambas as tendências. A terceira foi a contação de histórias. Uma tia, irmã de meu pai, com quem passávamos todos os fins de semana desde que eu tinha alguns meses de vida. Antes de deitar, ela contava as histórias.
Hoje, escrevo. Tenho o meu ateliê. A minha introspecção. E também abri a minha loja, o meu canal, a minha plataforma, que me garantiu uma abertura, um diálogo. Este canal é o meu cineclube.
Meu pai era o comerciante. Hoje o chamariam de empreendedor. Minha mãe era – e ainda é – a artista.
Como um bom e velho Édipo que todo adolescente pretende ser, eu fugi de casa, não quis ser um herdeiro direto de nada, quis fazer o meu próprio destino. Formei-me em psicologia. Publiquei meu primeiro livro. Enveredei pela pesquisa acadêmica. Comecei a lecionar. A atender em consultório particular. Fiz toda a volta e retornei ao ateliê-escritório. Apropriei-me simbolicamente da minha herança, nos meus termos.
Nesta combinação, não deixei de fazer mil vezes a pergunta para mim mesmo: mas artistas precisam vender? Como o artista apresenta sua obra? Como alia o desejo e a necessidade dentro de si?
Escritores e os tais empreendedores não pensam da mesma maneira. Não agem da mesma forma.
Empreendedores não se envolvem necessariamente na essência do que comercializam. Meu pai não fez um curso de cinema antes de abrir uma locadora. Escritores são carregados de propósito, e muitas vezes têm dificuldades de separar o que fazem de si mesmos.
O propósito principal do empreendedor é atingir uma meta, seja qual for. O propósito principal do artista é o trabalho. Minha mãe ficava triste de não poder vender o seu trabalho, mas no dia seguinte, não conseguia evitar de retornar às telas e às tintas.
Empreendedores costumam ter diversas atividades paralelas. Os escritores buscam confluir suas atividades em uma só. O meu caso: escrevo, dou aulas de escrita. No meu tempo livre, você vai me encontrar lendo, muitos dos meus amigos são escritores etc.
Empreendedores querem vender. Artistas muitas vezes não sabem o que querem.
Empreendedores estão sempre buscando a próxima oportunidade. Escritores não se imaginam fazendo qualquer outra coisa, porque precisam criar.
Empreendedores delegam. Escritores quebram a cabeça e fazem as coisas eles próprios, ou simplesmente não as fazem.
Muita gente considera as figuras do escritor e do empreendedor como lugares de mundo diferentes, discrepantes e inconciliáveis. Seria por isso que um artista precisaria de um empresário, um músico de um produtor, um escritor de seu agente literário. Mas o fato é que produtores, agentes e empresários deste tipo estão em falta, e existem muitas situações em que o escritor poderia se beneficiar do pensamento estratégico do empreendedor. Talvez tivessem mais a ganhar que a perder se aprendessem a vender, se pudessem delegar algumas coisas, se soubessem mais do que querem.
Se a minha mãe tivesse vendido mais quadros, é evidente que não se tornaria uma pintora ruim por conta disso. Pelo contrário: poderia se sentir mais autorizada a buscar um caminho próprio, poderia dispersar-se menos em uma infinidade de projetos e possibilidades.
Numa coisa, contudo, um escritor não pode ser um empreendedor.
Ele não pode nunca deixar de manipular o seu objeto de trabalho, de conviver constantemente com ele. Ele não pode nunca alienar-se do que faz. No mercado editorial, um livro pode ser vendido como uma salsicha. Mas em seu ateliê, ele deve seguir sendo lapidado como um diamante. Se você crescer, amadurecer, obtiver reconhecimento, receber uma enxurrada de convites, o momento em que você abdicar do seu ateliê pelo buzz dos mercados, a sua arte corre o risco de agonizar. Aqui, é bom que você não seja um empreendedor.
A precedência é sempre a do artista. O resto vem depois. O resto lhe dá sustentação e continência. Como diria William Blake, não são as artes que servem o Império. É o Império que deve seguir as artes.

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