Outro dia, sem aviso, me dei conta de que todos os livros que escrevi foram uma forma de testemunho.
“Estado Vegetativo” é um romance policial, mas é também o testemunho do jovem que fui, recém formado, morando sozinho em uma kitinete no centro de São Paulo e me virando para pagar as contas. “Dionisio em Berlim”, além de um réquiem dessa juventude perdida, traduz a diluição da consciência nas noites da capital alemã, do desamparo e do desassossego de viajar sozinho, das pessoas que conheci e das que perdi.
Tantos escritores fazem e fizeram o mesmo. De Annie Ernaux a Graciliano Ramos. De Carolina Maria de Jesus a Philip Roth. Uns mais apegados, outros mais descolados da realidade imediata, o que fizeram foi guardar a memória do presente e seus desvelos.
Pessoalmente, a ficção e a não-ficção serviram para que eu pudesse irradiar para fora de mim algo que eu julgava premente e essencial, de transmitir uma imagem entrevista da beleza humana e natural, de soprar e fazer durar, ainda que em outra linguagem e de modo frágil, uma paisagem, uma ruptura, a visceral e dolorosa vida das coisas que nos atravessam.
Espantalho (1941), Candido Portinari
A escrita se presta a muito mais do que à publicação. Publicar é bom e muitas vezes necessário, mas não raro também será frustrante, demorado, melindroso. Muitos aspectos da publicação não têm nada a ver com literatura.
A escrita é outra coisa. Escrevemos para entender ou para manifestar a nossa estupefação. Escrevemos por mágoa e por amor. Escrevemos para virar a página, para aceitar a transitoriedade ou para colocá-la em movimento.
A prática transforma a vida, porque muda o modo como a encaramos. É como se passássemos horas, dias, anos, cortando e polindo cristais, transformando-os nas lentes através das quais passamos a sentir e a enxergar. Escrever é uma forma de sonhar. É uma forma de dormir e de acordar.
Esses dias, li a chamada de uma matéria sobre uma senhora portuguesa que manteve ativa durante oitenta anos a prática de escrita do diário. Nada mais legítimo, nada mais subestimado. Muito do que é a literatura, do que ela se torna, nasce desta insistência.
Escrever sobre si, sobre um irmão, escrever a memória dos pais, dar testemunho de algo que, sem a cultura dos livros, se perderia para sempre. Escrever também para esquecer, para deixar para trás.
Tão simples como abrir um caderno e começar.
Um abraço,
Tiago