Revisar um livro é uma delícia. É como um jogo de sete erros no qual o cálculo linguageiro procura sustentar uma estrutura de pequenos e grandes componentes. A revisão é o momento da arquitetura e da escultura. Do detalhe e da engenharia.
Não importa que tipo de livro você esteja escrevendo, a revisão é uma etapa essencial do processo. É ela que permite ao escritor uma aproximação concreta do texto, superando reações extremas de “isto está um lixo, vou queimar e nunca mais escrever, jogar fora e aposentar o meu sonho para todo o sempre” de um lado, a “que lindo, que maravilha, que orgulho de mim mesmo, não quero nem ver mais e vou mandar pra todo mundo e abraçar o mundo viva” do outro.
A melhor revisão é a nua e crua. É o papo sério com o texto, e que, quanto mais experiente você for, mais natural irá se tornar. Além disso, é também uma oportunidade de refinar os olhares, de aprender com os próprios lapsos e tornar-se um autor melhor.
Existem muitas questões a atentar: a coerência de estilo e linguagem, a consistência dos personagens, o envolvimento do enredo, a proposta formal, o ritmo e a música. Mas antes disso, existem alguns pontos críticos mais elementares que se você deixar passar, turvarão a vista de qualquer bom leitor que encontrar o seu texto. Você não vai querer perder os bons leitores de vista por conta de bobagens. Mas caso se descuide de alguns destes elementos, pode acreditar que o leitor perderá o fluxo da leitura e ficará pescando os seus erros sempre que aparecerem. E esta boa alma provavelmente vai pensar duas vezes na hora de ler um outro livro seu.
O uso da vírgula
Muita gente fala que a vírgula é um elemento intuitivo, ou que ela deve estar relacionada com a respiração e os descansos de um texto, e algumas pessoas a relacionam com a subjetividade de quem está escrevendo.
Recomenda-se ao escritor em formação que ele conheça as regras, para fazer bom seu bom uso ou até para se permitir subvertê-las intencionalmente, caso seja interessante para o seu projeto literário.
Encontramos em Saramago, por exemplo, uma experimentação deliberada com o uso das vírgulas, reinventando a pontuação para marcar a prosa com o ritmo da oralidade, fluindo a narrativa. No entanto, utilizar as vírgulas de maneira descuidada, fora da intenção de um projeto como o de Saramago, pode repercutir mal nas mãos de um editor ou de uma editora.
Um bom truque para empregar a vírgula é lembrar da estrutura de frase da língua portuguesa: sujeito + verbo + objeto. Não separamos estes elementos com a vírgula.
Abaixo algumas dicas sobre quando usá-la:
1) Isolar vocativo (termo que chama a atenção):
Maria, venha logo para a casa!
2) Separar o aposto (termo explicativo):
Roma, a cidade eterna, recebe hoje muitos turistas.
3) Isolar expressões indicativas de circunstâncias como tempo, modo, lugar.
Durante muito tempo, a literatura romântica influenciou jovens.
4) Antes das expressões mas, porém, contudo, pois, logo:
Todo mundo já ouviu falar, mas nem todo mundo leu.
O travessão não é hífen!
Principalmente quando escrevemos no computador, é comum a tendência de substituir o travessão (—) pelo hífen (–). Apesar de parecidos, os dois são sinais gráficos diferentes com funções bem demarcadas. O travessão é utilizado para indicar o discurso direto ou destacar um trecho dentro da frase. É muito comum na literatura que ele seja usado para intercalar o diálogo com a narração:
— Você não quer me ver? — perguntou ela tristemente.
Um bom diálogo pode ser o elemento chave para acertar o ritmo do seu livro. Para que o editor seja fisgado pelo conteúdo das conversas de seus personagens, é importante não distraí-lo com este erro que pode ser facilmente evitado. Você pode guardar o comando do travessão no teclado: Alt + 0151. No Mac, o atalho para travessão é Shift + Option + “-” (sinal de menos).
Analisar as palavras que o processador de texto destaca em vermelho
Otimizar os recursos que temos disponíveis a nosso favor pode ser um ótimo começo. Para quem escreve em um processador de texto, como o Word ou o Scrivener, observar o que ele está indicando ajuda a examiná-lo mais uma vez. Assim, você enxerga mais de perto o que está precisando de polimento. Caso determinado grifo esteja incorreto, você pode, com o botão direito do mouse, incluir o vocabulário no repertório do computador. No Scrivener, por exemplo, este recurso se chama “Conhecer Ortografia”.
Trechos confusos não intencionais
A menos que o seu projeto literário peça uma prosa confusa para demonstrar o estado emocional de um personagem ou um cenário caótico, é importante voltar para o texto e verificar se aquele trecho escrito no calor do entusiasmo ficou mesmo claro: isso garante que seu leitor não vá se perder sem ser essa a sua intenção.
Redundâncias
Um pouco como no item acima, é necessário voltar ao texto para não deixar passar alguns detalhes que podem estar se repetindo em sua extensão. Sobretudo quando o processo de escrita fluiu e você não quis interromper o fluxo de pensamentos, é importante voltar e observar o que ficou pelo caminho. Você irá agradecer a si mesmo depois se dedicar um tempo a buscar essas pequenas infiltrações.
Algumas clássicas redundâncias constituem vícios de linguagem e são bem conhecidas, como “metades iguais” ou “surpresa inesperada”. Na literatura, a redundância pode aparecer de outras formas, como na repetição do uso de um adjetivo específico para descrever um personagem sempre que ele está em cena, ou a repetição de uma informação que o leitor já assimilou em outro momento da narrativa.
Anglicismos
Estamos imersos na cultura anglófona o tempo inteiro. Assistimos às séries, filmes, lemos artigos e livros e, ultimamente, importamos conceitos baseados em vivências e realidades destes espaços que têm o inglês como língua principal. Escrevendo em português e fazendo literatura brasileira. Essas impregnações, contudo, requerem cuidado.
Um caso que pode parecer sutil, mas é um bom exemplo dos empréstimos que fazemos de outras línguas, é o uso da preposição “sobre”. No inglês, a frase “it’s about black lives” faz sentido, mas traduzida ao pé da letra para o português, “é sobre as vidas negras”, ela se torna dissonante. No português, a falta de um sujeito impede o uso da preposição tal como ela está empregada.
Economize nas exclamações e nas reticências
Se alguém sempre fala com você gritando, vai chegar um momento em que você deixará de ouvi-lo. Acredite: o mesmo pode se aplicar a exclamações e reticências. Na escrita, todo abuso banaliza o seu objeto. Pontos de exclamação ou reticências podem parecer uma boa ideia para expressar as emoções dos personagens ou avivar os diálogos, mas eles podem pesar e deixar sua narrativa menos fluida. Cortar os excessos de pontuação pode ser uma oportunidade para exercitar o lirismo – ainda que prosaico – da sua narrativa, aquela parte mais introspectiva do texto, talvez até mais poética.
É isto. A gente poderia se prolongar indefinidamente sobre o tema, mas estes elementos, acredito, já podem dar início a um bom trabalho de revisão. De algum modo, quando mexemos no próprio livro, uma segunda sessão de revisão revelará outras coisas que até então passaram despercebidas. E numa terceira sessão, com o texto mais limpo, você verá mais coisas. Não se preocupe: é assim mesmo. Prossiga. Acredite no processo. Se um perigo do escritor é revisar indefinidamente um mesmo projeto, outro perigo é sem dúvida o de atropelá-lo em nome dos seguintes.